quinta-feira, 2 de julho de 2015

“Nêmesis” – H.P. Lovecraft


Através dos portões assombrados do sono
para além do noturno abismo, tenebroso,
tenho vivido minhas vidas incontáveis
e sondado com a vista a multidão das coisas;
e me debato e grito antes do amanhecer,
enlouquecido pelo medo.

Rodopiei com a terra em seu alvorecer,
quando o céu era só uma poeira de fogo;
e vi o bocejar do sombrio universo,
por onde giram sem propósito os planetas,
por onde giram num terror que ninguém ouve,
sem consciência, brilho ou nome.

Tenho vogado sobre mares infinitos,
sob uns sinistros céus que as nuvens enegrecem;
que fende, a serpentear, o raio coruscante,
e que ressoam com os histéricos lamentos,
com os gemidos de demônios invisíveis
que se elevam das águas verdes.


Como um cervo, atirei-me através das arcadas
do bosque primordial, vetusto e esbranquiçado,
onde o carvalho sente a presença que marcha,
pisando um solo onde ninguém ousou pisar;
e fujo de uma coisa estranha que me envolve
e olha, lá do alto, de entre os galhos.

Perambulei pelas montanhas cavernosas
que se erguem da planície, estéreis e desertas.
Bebi das fontes cujo odor era o do sapo,
que fluem lentamente até o pântano e o oceano;
e em lagos quentes e malditos vi as coisas
que nunca mais quero rever.

Vasculhei o palácio encoberto pela hera,
atravessei o seu vestíbulo deserto,
onde a lua que sobe e avança sobre os vales
exibe as formas dos tapetes das paredes,
estranhas formas, que o delírio entreteceu,
as quais não lembro sem tremer.


Espiei através das folhas das janelas
para as florestas decadentes de ao redor,
para essa aldeia cujos tetos numerosos
sofrem a maldição de um solo tumular;
e de entre o mármore entalhado das colunas
escuto, à espreita de algum som.

As tumbas freqüentei das eras infinitas.
Nas asas do pavor, voei às regiões
onde arrota fumaça o Érebo, e ao longe surgem
montes que a neve encobre, enevoados e lúgubres;
e aos reinos onde o sol do deserto consome
o que jamais há de alegrar.

Eu era velho quando os faraós ocupavam
seu opulento trono às margens do amplo Nilo;
eu era velho já nessas prístinas eras,
quando eu, e somente eu, fui vil; e o Homem ainda,
em bem-aventurança, imáculo, habitava
a ilha do Ártico longínquo.


Oh, grande foi de meu espírito o pecado,
e de sua sentença o alcance imorredouro;
não pode redimi-lo a clemência do Céu,
nem sua falta ser aplacada no túmulo:
vêm batendo através dos éons infinitos
as asas da impiedosa treva.

Através dos portões assombrados do sono
para além do noturno abismo, tenebroso,
tenho vivido minhas vidas incontáveis
e sondado com a vista a multidão das coisas;
e me debato e grito antes que o dia nasça,

enlouquecido pelo medo




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