sexta-feira, 3 de julho de 2015

As Ruínas da Glória

Salve, tristes relíquias do passado!
Sombrias ruínas, desolados muros,
Dos fantasmas da noite áspera estância,
A vós do bardo a inspiração noturna!
Aqui, à sombra de um pilar partido,
Sólio, quem sabe? de um herói do culto,
Da natureza na mudez augusta
Venho adormir paixões que a vida exaurem.

Foi aqui do Senhor o templo e o trono.
Neste chão que animais imundos pisam,
Onde estéril vegeta o cardo, a urtiga,
Os fiéis os joelhos encurvavam
Ante o Deus que perdoa. Estas paredes,
Ao som dos hinos festivais do povo,
Ao clangor harmonioso dos timbales,
Abalaram-se outrora. Em vez do aroma
Da baunilha e da acácia, e incenso em nuvens
A Deus levando as lágrimas dos homens,
Da caçoula sagrada aos céus subia.
Em vez do impuro coaxar dos brejos,
A voz dos padres, compassada e grave,
Do Rei-profeta os salmos entoava.
Foi aqui do Senhor o templo santo:
Aqui venho sonhar, carpir meus males.

Além os altos serros se desenham:
Além distende-se a campina ao longe.
Entre nuvens de fogo o sol rasteja
Para o ocaso tombando. É vinda a hora
Das ímpias gritas do Absínio ingrato,
No ídolo da manhã cuspindo a afronta.
Dessa raça de cínicos idólatras
Prouvera a Deus que fosse terra isenta!
Inda os há, desgraçados que remordem
Do benfeitor a mão que os elevara
E ainda sobre eles benfazeja desce.
Inda os há, desgraçados que renegam
Da idéia que a cabeça iluminou-lhes
Com a auréola da glória e dentre a turba
Do poder ao fastígio os levantara.
Heróis do dia, a populaça aplaude-os;
Precitos amanhã, os apedreja.
Ó espírito de fogo! à imagem tua,
Da fortuna a inconstância os homens provam,
No báratro sem luz a fronte escondem
E no inferno da dor a glória expiam.
Porém tu radioso o colo reergues,
De novo aceitas ovações de um dia,
Pagando o insulto com dobrado lume
Que a vida e a seiva comunica ao mundo.
Semelhança de Deus, perdoando punes,
Rei decaído, da montanha os tergos
De azul e ouro um trono te alevantam.
Sol poente, anjo de luz, eu te saúdo!
Verte em minh’alma de teu ser um raio
Que as névoas da desgraça me alumie.
Dá vida a estas ruínas denegridas;
Sustenta o campanário que desaba
Do tempo à brônzea mão; ergue as colunas;
Enflora os capitéis que o chão alastram
Co excelsa c’roa de fulgentes raios!

Salve, mudas relíquias do passado!
Sombrias ruínas, desolados muros,
Dos fantasmas da noite áspera estância,
A vós do bardo a inspiração num carme!
Aqui, à sombra de um pilar tombado,
Da natureza na mudez soturna
Venho adormir paixões que a vida exaurem.

Na aba do outeiro serpenteia o rio,
Fiel imagem do tempo, em giro eterno,
Testemunha ocular de heróicos feitos
Dessas das selvas alentadas tribos
Do grão Tebiriçá, nos evos idos,
Que à voz dos Padres manitós deixavam,
E a língua e os lares e os sangrentos ritos
Pelas tábuas da Lei. Triunfo e glória
D’Aquele que habitava este delubro
Em tempos mais felizes, quando a crença
Sobre estas plagas que o ateísmo gela
Seu lábaro de fogo desdobrava.
Ai da nação que a farisaica gente
Do tabernác’lo as aras descortina!
Das iras do Senhor o vaso entorna
Pelas bordas a angústia, e já contados
Seus dias foram n’ampulheta. Ai delas!
Do deserto as necrópoles maldizem,
O infortúnio chorando, os erros do homem;
E os ventos sussurrantes que perpassam
São vozes roucas de híbridos fantasmas
Dos díscolos da Lei.

                        Mas vós, ó ruínas!
Que a descrença atestais dum povo insano;
Vós, sublimes relíquias do passado,
Restos perdidos do delubro santo,
No trono de Jeová depondo as preces
Dos raros justos que inda a terra abriga.
Trocada a mirra pelo incenso agreste,
E as harmonias por incultos cantos,
Na voz dos ventos, da criação nos hinos,
Da tarde no esplendor, do sol no brilho,
Uma súplica a Deus fazei que chegue
Pelo povo descrente.

                        Ali por terra
Onde virosa serpe as urzes cobrem,
A pia batismal jaz torpe e imunda.
Nessa fonte lustral de linfa pura
Que aos peregrinos no areal da vida
As entranhas em brasa mitigavam;
Nesse cofre de místicos perfumes
Que a alma ebriavam do inocente infante
Pelos anjos chamados à grei do Cristo;
Nessa alâmpada viva cujo pábulo
No leito do Jordão em ondas rola;
Nutre agora o réptil a prole impura,
Qual disforme aleijão da natureza
Da Providência aos planos escapando.

De pé mal se sustenta o campanário,
Atalaia da vida, em cujo cimo
Com brônzea voz, solene e compassada,
Os fiéis à oração chamava o sino.
Do tempo no rodar contando as horas,
O passado, do nada o primo verbo,
Impassível aos homens recordava,
E o nascimento festejava alegre,
E do himeneu cantava as doces glórias,
E da morte o estridor triste carpia,
Da existência no tríplice momento
Os términos marcando. Assim do Arcanjo
No derradeiro dia a voz severa
Das alturas do Horeb no vácuo imenso
Ecoará majestosa. E então as lápidas
Esb’roadas no espaço voarão: e os mortos
Do templo escarnecido justas contas
Ao Senhor prestarão.

                        Ó belas ruínas,
Que a descrença atestais da turba insana!
Pelo povo descrente, o israelita
Das tábuas do Sinai iconoclasta,
Do culto ímpio do bezerro de ouro
Desvelado cultor, sem Deus, sem pátria,
Muda esfinge nos plainos do deserto
Do séc’lo a corrupção mostrando aos pósteros;
Uma prece de amor mandai aos altos,
Treno de dor que lhe redima os crimes.

Salve, mudo castelo do passado!
Sombrias ruínas, desolados muros,
Dos fantasmas da noite áspera estância,
A vós do bardo uma canção plangente!
Aqui à sombra de um pilar partido,
Da natureza na mudez augusta
Venho pedir a inspiração de um carme.

Velhas lendas aqui registra a história;
Aqui do bardo a voz retoma o acento
Com que talvez cantara épicos feitos.
À magia das cores animados,
Na tela do pintor surgindo à vida,
À memória dos homens no futuro
Irão os restos do esquecido templo.
Da fé outrora, asilo hoje das lendas,
Da idéia ardente que inspirar-se nelas,
Fonte perene de emoções soidosas
São estas ruínas que ainda o tempo acata.

Adeus, tristes relíquias do passado!
Sombria torre, desolados muros,
Dos fantasmas da noite áspera estância,
A vós do bardo a inspiração soturna:
A vós do alaúde a derradeira nota:
A vós um canto de saudade e mágoa!

Macedo Soares


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