quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Lenda - PÉ-DE-GARRAFA


          O Vão do Paraná, aquele grande vale de sessenta léguas, formado pelas ramificações que correm para o Norte do Estado do espinhaço da Serra Geral, é o "habitat" do Pé-de-Garrafa. Coberto de extensas florestas, verdadeiras muralhas verdes que abrigam os cursos dos rios, o Vão do Paraná é uma região misteriosa, em que o homem se sente assoberbado pela natureza. Metido na mata sombria, remendada aqui e ali por pedacinhos do céu azul, o homem sente-se penetrado do terror da natureza.

             E o estalido da folha seca que o mateiro pisou cauteloso, o pio agudo dum pássaro, o farfalhar das mantilhas de folhagens seguras do ombro alto dos troncos, ao sopro do vento - o fazem estremecer e arrepiar.

             A mata com seu exército de troncos impassíveis, com seus ruídos misteriosos estofados de silêncio, é deveras assombrosa. A imaginação aí fervilha. E o terror cria duendes e gênios, que povoam os recessos intrincados e sombrios e trançam nas encruzilhadas dos caminhos. Se o caminheiro topa dois galhinhos cruzados em seu trilho, salta-os se benzendo - foi o Saci que os dispôs assim no caminho.

             Se o ouvido alerta escuta um grito agudo, estaca anelante, pálido. Repetindo, retrocede apavorado - é o Pé-de-Garrafa - o gênio mau da mata, corpo de homem, preto, umbigo branco, um pé só em forma de fundo de garrafa. Vive gritando pelas matas à procura de caminho. Não se deve responder, senão vai aproximando, aproximando... e ninguém sabe, mas deve suceder algo horrível. Habita só as matas fechadas. Lenhadores, caçadores e viajeiros, já ouviram seus gritos pavorosos; ou pularam agoniados seus grandes rastros no chão úmido.


             Outros entretanto informam que o Pé-de-Garrafa é assim: tem um chifre só na cabeça, um olho só na cara, uma única mão, com garras, e um pé só redondo como fundo de garrafa, que lhe dá o nome. Se alguém o encontrar, declaram estes informantes, é um perigo: torna-se uma fera terrível e só se pode acertar o tiro no umbigo, único ponto branco e vulnerável.

             Contam até que um fazendeiro, passando por uma, mata vizinha de sua fazenda, ouviu o grito do Pé-de-Garrafa. Como era valente e não temia nada, respondeu, com outro grito. O grito então veio se aproximando, aproximando, cada vez mais forte, mais pavoroso, até que o fazendeiro horrorizado, esporeou o animal, abalando pela estrada a fora, à toda, chegando esbaforido à fazenda, onde contou o caso.


               Esta lenda, das mais famosas do Nordeste colhi-a em Formosa. Segundo constatei por informações de diversos conhecedores do Norte e Leste, ela é corrente entre as populações destas regiões. A. Americano se refere, de passagem, a este mito, à página 49 de seu livro Lendas e Encantamentos do Sertão: "O homem indignou-se e disse que fosse buscar quem quer que fosse, rico ou pobre, até mesmo o Pé-de-Garrafa, se o encontrasse". Não é restrita, pois, ao Estado do Piauí, onde primeiro foi colhida por Vale Cabral, segundo pensou um eminente folclorista. O acadêmico Gustavo Barroso afirma mesmo que já a ouviu alhures. Sua área geográfica deve ser portanto bem maior.


          TEIXEIRA, José A. Folclore Goiano: cancioneiro, lendas, superstições. 2ª ed. Rev. e ampl. Vol. 306. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1959.




Matéria:  Leitora  Pepita Afiune

Meus sinceros Agradecimentos.


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