segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Anjo-Demonio

É noute de saráo; referve a dança:
E ei-la alegre a sorrir, e as tranças d'ebano
A leve ondulação do esbelto corpo
Paracem-lhe seguir na doida walsa:
A veste assetinada oscilla e vôa,
Dos breves, lindos pés imita o giro,
Que ligeira perfaz em torno a sala:
O passo é tão veloz, que o bello rosto
Não posso contemplar, nem ver-lhe os traços.

Mas ei-la que parou, parou a dança;
Bate-lhe o coração, lhe arqueja o peito
Do cansaço da walsa, a voz lhe treme,
Em suspiros s'esvai, em mudas phrases;
Nas faces vem nascendo rubras rosas,
Nos labios de coral descobre perolas:
Tem nos olhos volcão, candor na mente,
No semblante reflecte sancta essencia,
O collo amorenado espelha o jambo

Mulher, mulher, espera, espera um pouco,
Não me volvas por piedade os olhos:
Eu temo enlouquecer, arde-me a fronte.
Mulher, mulher - quem deo-te a formosura,
Quem nos labios prendeo-te esse sorriso,
Que mofa, que escarnece, que embriaga,
Aos ceos arrebata, arroja ao inferno -
Riso de sarafim, rir de demonio?
É a terra a tua patria ou outra esphera?

Ah! não; não es mulher, tens d'anjo as formas,
Ao involucro da terra não pertences:
A madeixa que roubou da noute as côres
Negra, negra como ella, inda mais bella;
Essa falla de magica duçura
Que os sentidos enleva e prende a alma,
Essa fronte que exprime um paraizo
De edenicos, ardentes pensamentos,
Não podia talhar-se n'este mundo.

Oh! és anjo talvez que transviou-se
Do caminho do céo, desceu á terra,
E na terra queimou as azas brancas,
E agora voltar não pode á patria.
Mas não; anjo não es; teus olhos queimão,
As vezes o teu riso esmaga, opprime,
Quando falla ironia, exprime escarneo;
E olhar de seraphim é sempre terno,
E seu riso é suave, é brando, é meigo.

Ah! já sei o que és: és um demônio
Que o sarcasmo traduz no forte riso,
Porem não; não ardeo-te a fronte linda
N'esse fogo infernal que abraza tudo:
Oh! sim, não; já sei, não és demonio:
D'alma a candidez repelle o Inferno,
O teu rosto é divino, o collo é sancto;
Agora desvendei todo o mysterio,

És typo sem igual - anjo-demonio.


João d'Almeida Pereira Filho

Publicado em 1850 pelo periódico Ensaios Literários.

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